Nunca será demais ressaltar a importância dos protestos de hoje, dia 18, contra o golpe de Estado, em defesa do Estado Democrático de Direito.
Vinte e sete anos depois da primeira eleição para presidente, a democracia brasileira encontra-se numa situação de impasse e ameaça de ruína. Os protestos de hoje destinam-se a montar a necessária linha de resistência a essa situação, ponto de partida para uma evolução favorável, do ponto de vista da maioria dos brasileiros.
O risco imediato é um golpe judicial, situação que se configura quando o Judiciário deixa de cumprir funções indispensáveis e legítimas, que envolvem a aplicação da lei em vigor, para assumir o papel central da vida política, tentando orientar mudanças nos rumos do país. Se havia alguma dúvida a respeito, não há mais.
Ao divulgar o arquivo de grampos de Lula, o juiz Sérgio Moro atravessou várias fronteiras que separam um universo de outro. Divulgou um grampo — justamente o diálogo entre Lula e Dilma — gravado fora do prazo autorizado. Sem valor legal, portanto.
Também descumpriu a determinação legal que permite gravações, e até sua divulgação, mas protege a privacidade das pessoas investigadas ao determinar que “gravação que não serve à prova deve ser inutilizada”, como recorda a Folha de S. Paulo em editorial de hoje.
Resolvida pelo juiz, assumida a fundo pela mídia grande, a divulgação de um material que era prudente manter sob reserva ajudou a criar uma nova cunha entre o governo, Lula e as instituições do Judiciário, inspirando previsíveis reações de má vontade daqui para a frente. Numa evolução cada vez mais politizada de seus despachos, Moro compara a situação brasileira com a dos Estados Unidos em 1974, quando ocorreu a queda de Richard Nixon. O ex-presidente norte-americano preferiu renunciar ao cargo depois que a Suprema Corte determinou que entregasse as fitas gravadas pelo sistema de som da Casa Branca, que mostravam sua atuação para acobertar os operadores do serviço secreto comprovadamente envolvidos no escândalo Watergate. Uma longa distância diante daquilo que se vê no Brasil de 2016. Sua função é impressionar plateias contra o governo.
Neste fim de março, o governo Dilma encontra-se numa situação específica. Atingida por uma conspiração de adversários no Judiciário, na televisão, no Congresso, no atual momento a paralisia de um governo eleito com mais de 54 milhões de votos em outubro de 2014 ultrapassou o nível da crise política para se aproximar do estágio mecânico.
Cidadão em pleno exercício de seus direitos, inclusive o de ocupar o ministério, pois sequer é réu, Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta duas dezenas de ações destinadas a impedir que assuma funções como ministro-chefe da Casa Civil. Nenhuma delas tem fundamento jurídico, mas todas se destinam a criar um ambiente político de insegurança e incerteza, minando a confiança e credibilidade que Lula levou ao governo ao ser nomeado.
Através do emparedamento de Lula, o que faz é questionar as prerrogativas de Dilma Rousseff, que, como presidente, tem a prerrogativa — na verdade o dever — de formar um ministério com quem julga ser as personalidades mais preparadas para dar rumo adequado ao país.
No Congresso, tiveram início os trabalhos da Comissão que, com base numa escala móvel de suposições e acusações de consistência questionável, pretendem afastar Dilma de seu cargo de qualquer maneira. Nas funções de maestro, o suíço Eduardo Cunha inicia uma transição entre o papel de inimigo público número 1 que exibiu no final de 2015 para o de mal necessário ao abate de Dilma de 2016. O sorriso exibido ontem mostra que espera ser bem sucedido – e recompensado em sua boa vontade premiada.
Uma amostra do estágio atual de coisas podia ser visto ontem de manhã no Planalto, para a cerimônia de posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Casa Civil, iniciativa que deveria abrir uma etapa decisiva reconstrução do governo Dilma Rousseff e reaproximação com o eleitorado original.
Reunida desde a véspera, numa iniciativa alimentada pelos grampos e estimulada e pela Tv Globo no país inteiro, uma massa de adversários do governo pedia a prisão de Dilma e de Lula.
Hostilizava cidadãos que exibiam sinais suspeitos de simpatia pelo Partido dos Trabalhadores, como um estudante de pós-graduação da Universidade de Brasília que resolveu sair de casa com uma gravata bordô com bolinhas no pescoço: “petista!,” disseram, num ambiente em que essa opção política, por um partido legal, que ocupa a presidência pela quarta vez consecutiva, parecia apontar para alguma forma de crime.
Na lembrança de que certos momentos da história se repetem como farsa depois de terem marcado o início de uma tragédia, sempre que os soldados do Gabinete de Segurança Institucional faziam algum movimento para reforçar a proteção do palácio, ouvia-se um grito que parodiava uma palavra de ordem que era berrada contra as tropas da ditadura, em 1968: “Você aí soldado, também é explorado…”
No interior do Planalto, naquele momento o governo já enfrentava uma primeira liminar contra a posse de Lula.
Em São Paulo, o repórter Antonio Martins fez um outro registro da situação, ao descrever o comportamento amistoso de uma Polícia Militar conhecida pela brutalidade dispensada a quem ousa promover protestos sem autorização prévia na avenida Paulista. A partir de uma entrevista do tenente responsável pela tropa, Martins revela que a orientação era não incomodar o protesto contra Dilma e Lula. Ele também conta que, quando homens do serviço de transito tentaram reabrir uma avenida essencial na circulação de veículos pela cidade, foram impedidos pela PM. Não custa reparar: o transito é responsabilidade da prefeitura de Fernando Haddad, do PT; a PM, do governo estadual, de Geraldo Alckmin, do PSDB.
Para além dos efeitos práticos sobre a conjuntura, os protestos de hoje têm o papel de afirmar uma força política de raiz popular, nascida e alimentada em anos recentes, antes e depois da chegada de Lula e do PT ao Planalto – algo que nunca tinha sido visto no país até alguns anos atrás.
Não vamos nos iludir: as provocações e atos de intolerância e ódio cada vez mais frequentes não ocorrem no vazio nem são atos de psicodrama. São atos políticos que procuram minar e quebrar a resistência de quem pode impedir um estado de exceção e a quebra de conquistas sociais.