Para especialistas, gestão do fundo não precisa sair da Caixa para que rendimento seja revisto. Mudança pode pôr em risco a existência do FGTS e trazer perdas para toda a sociedade
São Paulo – O diretor do departamento do FGTS do Ministério da Economia, Igor Vilas Boas de Freitas, anunciou, na semana passada, que o governo Bolsonaro estuda acabar com o monopólio da Caixa Econômica Federal na gestão dos recursos dos trabalhadores. A justificativa é que os bancos privados poderiam cobrar menos e oferecer maior retorno aos trabalhadores com outros tipos de aplicação. A proposta, contudo, desvirtuaria uma das funções básicas do fundo.
Para o presidente da Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica Federal (Fenae), Jair Ferreira, o objetivo do governo é beneficiar o mercado de capitais. São cerca de R$ 450 bilhões acumulados pelos trabalhadores. A Caixa recebe 1% do total para aplicar em políticas públicas. Segundo Jair, gerir os lucros das aplicações não é a tarefa mais difícil.
Criado em 1966, o Fundo de Garantia nasceu como uma substituição do direito à estabilidade de emprego, que era adquirida após o trabalhador completar 10 anos numa mesma empresa. A cada mês, o empregador deposita 8% do salário bruto em conta no nome do trabalhador. Ele recebe o montante poupado no momento da aposentadoria, ou em caso de demissão sem justa causa.
Por lei, os valores são corrigidos pela Taxa Referencial (TR), taxa de juros utilizada no reajuste de títulos públicos e também da poupança. Criada em 1991 para ter efeito desindexador na economia, a TR acaba perdendo da inflação, o que dá margem de crítica para os que argumentam que os trabalhadores têm prejuízo em relação a aplicações financeiras convencionais. Acontece que o FGTS não é uma aplicação financeira convencional.
É essa forma de correção que torna o fundo uma fonte de crédito mais “barato” para que a Caixa possa viabilizar o financiamento de políticas públicas – em habitação, obras de saneamento e de infraestrutura. Os recursos são administrados por um Conselho Curador, formado por representantes do governo federal, das empresas e dos trabalhadores.
“Queremos saber como é que pretendem gerir as cerca de 200 milhões de contas existentes. Queremos saber quem é que vai atender aos milhões de trabalhadores que têm saldos no FGTS. Quem é que vai gerir as políticas? O FGTS tem juros mais baixos porque é um grande fomentador de políticas, seja através do financiamento habitacional, de infraestrutura, dentre outros. Se subir a remuneração do fundo, vai encarecer o recurso para quem toma emprestado”, ressalta o presidente da Fenae.
O saldo do FGTS também pode ser utilizados pelo trabalhador para a compra da casa própria – para dar entrada num imóvel, reduzir o saldo devedor ou abater o valor de prestações.
Segundo o analista jurídico Rafael Netto Arruda, do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná (TRT-PR), o FGTS não é apenas uma “poupança” do trabalhador, mas um fundo de caráter “multidimensional e social”. Em artigo vencedor do concurso de monografia dos 50 anos do FGTS, ele explica que é justamente a baixa liquidez dos recursos do fundo que garante os empréstimos a juros baixos a construtoras para que realizem empreendimentos habitacionais ou obras na rede de distribuição de esgoto ou coleta de água, por exemplo.
Função social
Para Arruda, é “legítima” a busca por maior rentabilidade no dinheiro do trabalhador. Contudo, a “bancarização do FGTS” pode representar o fim das políticas públicas voltadas para a habitação, que passaria a ser apenas “mais um produto do mercado” financeiro, regido pelos mesmos critérios utilizados na concessão crédito. “Na prática, uma política pública, por mais ‘limitada ou pouco criativa’ que ela seja, deixaria de existir para dar lugar a uma gama de contratos privados, submetendo o trabalhador e os atuais beneficiários de uma política habitacional à mercê dos bancos.”
Sem o monopólio da Caixa, o Banco Central seria o responsável por definir as regras para a gestão das contas do trabalhador. “Atendidas as diretrizes definidas pelo BC, cada banco terá a liberdade de criar suas próprias regras para explorar esse tipo de produto. Se, por um lado, pode haver maior rentabilidade ao saldo do FGTS, por outro, haverá cobrança diretamente do trabalhador de taxa de administração, o que hoje não ocorre”, alerta Arruda.
Em vez de oferecer a gestão do fundo aos bancos, ele sugere outras formas que garantam maior rentabilidade, como uma mudança legislativa que alterasse a correção pela TR.
Tanto o analista jurídico como o presidente da Fenae lembram que a gestão do FGTS já foi permitida para todos os bancos, tendo sido centralizada na Caixa em 1993, depois de uma auditoria dos órgãos controladores do governo terem verificado que havia desvio de finalidade, porque os bancos privados não geriam corretamente o fundo, o que pode voltar a acontecer. Até essa data, eram cerca de 70 instituições envolvidas na gestão dos recursos dos trabalhadores.
Fundo garantidor
Na proposta estudada pelo governo, os recursos do FGTS seriam utilizados como garantia dos empréstimos tomados junto aos bancos privados. “Vale destacar que não estamos falando de um investidor querendo reaver parte do seu capital para minimizar a perda de um investimento, mas de um trabalhador que está lutando pelo direito à moradia plena.”
Caso seja concretizada a proposta do governo, Arruda reivindica que seja fixada uma taxa mínima de retorno, superior ao rendimento da poupança. Ele defende ainda que caiba exclusivamente ao trabalhador a escolha do banco que fará a gestão do saldo de sua conta vinculada, não facultando o direito a essa escolha às empresas pagadoras.
Ferreira faz um diagnóstico mais grave. Para ele, o fim do monopólio da Caixa na gestão do FGTS e as políticas de saques, adotadas pelos governos Temer e Bolsonaro, apontam para um esvaziamento do fundo. “Podemos caminhar para daqui a pouco não termos mais o FGTS. Esses 8% reduziriam o custo da folha para os empresários. O trabalhador perde a sua poupança e o governo não terá um fundo para executar políticas públicas. Quem vai perder é o trabalhador, duas vezes ainda por cima.”
RBA